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Wednesday, February 16, 2011

Eu guio, ela dirige

"Não, moça. Eu não vou por aí. A senhora deve estar certa, mas eu faço esse caminho há 35 anos e, se me desviar dele, vou me sentir perdido", diz meu pai, desajeitado, mas ninguém o escuta.

Isso é porque ele é um gentleman. A maioria dos outros motoristas, na mesma situação, xingaria o GPS. É natural vê-los comprar briga com o aparelhinho, tentando provar para o sistema de posicionamento global que ele não entende nada. Agem como se a tecnologia se importasse. Ou lhes desse ouvidos.

Aparelhos de orientação veicular, que já foram uma frescura tão digna de limusines quanto telefones móveis, hoje são cada vez mais comuns. Colados aos para-brisas ou embutidos nos smartphones, eles são mais uma tecnologia a serviço da distração do motorista em cidades cujas vias estão cada vez mais cheias, nervosas, mutantes e sem sentido.

O comportamento humano não evolui tão rápido. Por mais que seja evidente para o motorista que seu interlocutor é máquina, muitos reagem como se transportassem um carona folgado e insistente, que não perde uma chance de palpitar sobre o caminho.

Parece ridículo, mas é mais comum atribuir reações humanas a interfaces do que se percebe. Por mais que gente de bom senso não tenha o hábito de gesticular quando fala para si mesma, é raro quem não faça caras e bocas durante uma ligação telefônica. Ou, quando está nervoso, olhe bravo para o celular, sem perceber que está berrando para um rádio, incapaz de compreender ou transmitir sua expressão facial. Essa é, acredito, a principal razão para o sucesso de esquisitices como o tele-sexo. Ou para a presença cada vez mais comum daqueles zumbis que, plugados a um viva-voz, saem feito malucos vociferando e mexendo os braços pelas ruas.

Mas voltemos ao navegador. Se ele incomoda tanto, por que ligá-lo quando se está em mares dantes navegados? Talvez porque o motorista se sinta só e busque companhia. Talvez para ter uma válvula de escape contra a ansiedade e a impotência de um trânsito parado. Ou ainda para justificar um investimento tão alto em um objeto de tão pouco uso, considerados os padrões de tráfego de quem não dirige profissionalmente.

Pouco importa o motivo, é curioso ver como a reação instintiva de muitos motoristas é parecida com a daqueles maridos que se vêem perdidos, guiando em círculos, e mesmo assim continuam se recusando a ouvir as recomendações da esposa. Principalmente se entre as recomendações estiver a de parar para pedir orientação. Parece até haver uma espécie de orgulho masculino em saber se orientar. "GPS, dotô, é que nem Viagra. Só usa quem não se garante", me diz, orgulhoso, um taxista. No banco de trás, meu telefone me diz que devo virar na próxima rua à esquerda se não quiser andar em círculos.

Mesmo assim, a maioria dos usuários que conheço usa a voz de uma mulher para orientá-los. Será que respeitariam uma voz de homem? Acredito que não. As proprietárias de GPS com quem conversei não se irritam menos com a "mocinha da máquina" e não raro se desentendem com elas. Pouco importa o gênero, parece haver entre os motoristas um prazer sádico ao mostrar para o aparelho que tal rua não existe, que é contramão ou que simplesmente não estão a fim de seguir recomendação nenhuma. E ponto final.

A atitude dos usuários de uma tecnologia costuma ser um belo reflexo de sua personalidade. Parte das histórias de GPS é pouco original, já que trata de erros e imprecisões do sistema, que logo serão nostalgia de quem "estava lá" quando a tecnologia nasceu.

A maioria das histórias, porém, é alarmante. Ela mostra nas entrelinhas o nível de ansiedade, solidão e desamparo do indivíduo urbano que, desprovido de um transporte público razoável, se vê trancado em uma lata durante boa parte do seu dia. Feito um animal confinado, ele tende a se esquecer que pilota um bólido de mais de meia tonelada, e o conduz como um pitbull de aço a rosnar para ciclistas, pedestres, motoboys ou outros motoristas que não reconheçam seu direito divino sobre as ruas.

Luli Radfahrer é Ph.D. em Comunicação Digital pela ECA

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