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Friday, September 3, 2010

Marina Silva e a Educação

Negra, evangélica e candidata a presidente, ela é capaz de mudar as próximas eleições no país

Kiko Ferrite

O que aconteceu de diferente na sua trajetória que a fez sair do seringal e virar senadora?

Sou movida a fé e determinação. Tem a marca do indivíduo, mas tem também uma série de pessoas que te apoiam. O que fez a diferença na minha vida foi a educação. Educação foi a fresta por onde entrei.

Imagino que não esteja se referindo só à educação formal.
Não, não. Mas a educação formal foi a fresta. Fiz Mobral [curso de alfabetização] com 16 anos, depois supletivo... Talvez tenha sido tão bem aproveitada porque na minha vida havia uma estrutura organizada. A aprendizagem que tive no universo da floresta era de muita brincadeira, fundamental pro indivíduo... Minha avó era católica e eu, desde criancinha, tinha o sonho de ser freira. Ela dizia: “Freira não pode ser analfabeta”. Aquilo ficou como um obstáculo pra mim.

Por isso resolveu estudar?
É.

Seus irmãos também queriam estudar?
Não era assim. Não tinha escola, ninguém mandava os filhos pra cidade. Educar era passar os valores da família e, ao mesmo tempo, ensinar a viver na floresta. Sendo que as mulheres eram sempre educadas pra ajudar a cuidar do roçado e da casa. Mas, no nosso caso, em função do matriarcado da nossa mãe, aprendemos também a cortar seringa e a fazer os ofícios dos homens... Quando o homem manda, é natural. Quando a mulher tem um protagonismo, parece que fragiliza o homem. Não devia ser assim. O matriarcado não retira o lugar do homem. Só dá à mulher um lugar da governança.

Mulher governa de maneira diferente?
Completamente diferente. Ela movimenta todas as peças da casa. O homem acha que, se ele dá ordem pra mulher, a ordem baixa, já deve estar subentendida pros filhos. É mais verticalizado. As mulheres vão de uma forma mais sistêmica, horizontal.

Por que a senhora quer ser presidente?
Ser presidente é contribuir para que as boas ideias se transformem em políticas públicas. O maior desafio do Brasil é ter um desenvolvimento sustentável, capaz de garantir às pessoas qualidade de vida, saúde, educação, habitação, entretenimento, conhecimento e inovação tecnológica sem destruir as bases naturais, a biodiversidade, os recursos hídricos, a terra fértil, enfim, todas as condições naturais que nós temos.

As eleições de 2010 são apenas um ensaio ou a senhora acredita que pode vencer?
Tenho chance real de ganhar, não é apenas um ensaio.

Mesmo num partido pequeno como o PV?
Se tivesse olhado para estrutura, nunca teria ajudado a criar a estrutura que o PT tem hoje no Acre... São 30 anos de luta socioambiental no Brasil. A internet vai ter um papel importante, sobretudo para aqueles que, como eu, não têm muito tempo de televisão. Espero que possa fazer diferença.

Muita gente afirma que a senhora só tem um assunto, meio ambiente.
Não dá mais para fazer essa compartimentalização. As coisas estão integradas. É um engano achar que uma economia descarbonizada é só uma bandeira de ambientalista. Tem que ser bandeira de empresários, de formadores de opinião, de cientistas, de políticos e de não políticos.

Com a sociedade mais organizada, a política convencional ficou menos relevante?
Depende. Os partidos estão cada vez mais relevantes, infelizmente, como máquinas de ganhar poder. Mas estão cada vez mais retraídos como espaço para discutir ideias, projetos, visão de mundo, visão de país.

Se o poder está em um lugar e as ideias em outro, como juntar os dois?
Reelaborando o papel dos partidos. Os partidos não podem ter a pretensão de hegemonizar a sociedade. Existem pessoas que dão contribuições políticas, mas não querem estar em partidos. São os núcleos vivos da sociedade. Os partidos têm que aprender a se relacionar com esses núcleos. É mais um processo de coautoria do que de hegemonia de ideias.

Como está se preparando para enfrentar uma campanha presidencial?
A preparação é algo que você tem que ter adquirido ao longo da vida. Essa trajetória é que será colocada à prova. Gosto muito da ideia de que “boa madeira não cresce em sossego”. Diz que quanto mais fortes os ventos, mais fortes as árvores.

O que os seus filhos e o seu marido pensam da sua candidatura?
Não é fácil, mas eles têm sido muito acolhedores e parceiros. Com inseguranças, também.

Pelo jogo sujo que costuma haver nas campanhas?
Eu era uma das pessoas escaladas para responder às queimações contra o Lula. Era muito pesado. Já era difícil me ver na berlinda defendendo o Lula dos preconceitos, “e agora como é que vai ser em relação a você, mamãe?”... Tento me colocar como uma pessoa que aprendeu muito com o sofrimento que tivemos dentro do PT nos últimos anos. Vi pessoas de quem gostava e que respeitava sendo desconstruídas.

A senhora acha que foram tratadas injustamente?
Em alguns casos, não tinham sequer a oportunidade de colocar a sua visão... Algumas pessoas erraram, foram erros graves, e devem responder por eles.

O que restou da sua relação com Luiz Gushiken, José Genoino, José Dirceu?
Não temos mais contato, ficou um certo distanciamento. Mas não alimento a execração dessas pessoas. Genoino foi muito importante na minha vida, e lamento as coisas que aconteceram com ele. O que desejo é que tudo possa ser esclarecido com justiça.

“A gente funciona pela dualidade. Então fica difícil reclamar se a vida de quem estava ao seu lado era parecida com a sua”

A senhora não deveria ter se pronunciado com mais veemência na época do Mensalão?
Me pronunciei nos espaços em que podia me pronunciar. Mas nunca coloquei que saí do PT em função daquilo.

Como foi a saída do PT?
Foi doloroso para mim. Saí pelas mesmas razões pelas quais fiquei tanto tempo. Para lutar pela minha causa, pela causa que tem que ser de todos os brasileiros, de todo o planeta: o desenvolvimento sustentável. Que, infelizmente, no PT ainda não foi assimilada.

Além de sair do PT, onde esteve por 30 anos, e entrar no PV, a senhora trocou a religião católica pela evangélica. Como foi mudar duas coisas centrais na sua vida?
Tenho excelente relação com meus irmãos católicos, respeito muito. Continuo cristã. Um processo de conversão não é algo que se possa racionalizar. Você pode fazer a escolha... Como o próprio Jesus dizia, “não é pela força nem por violência, é pelo toque do espírito”.

Foram transformações importantes, em uma altura da vida em que a maioria das pessoas está mais rígida, menos aberta a mudanças.
Santo Agostinho se converteu aos 40 anos. Existem inúmeros exemplos de pessoas que fizeram algo parecido. Se você acha que as coisas estão cristalizadas, fica muito difícil mesmo. Mas se você entende que, em alguns momentos, tem que passar por um processo de desadaptação criativa daquilo que você sempre foi... Isso não tem nada a ver com uma posição frágil.

Como é a sua relação com o líder de seu novo partido na Câmara, Zequinha Sarney?
De respeito e amizade. Eu o conheci quando ele era ministro do Meio Ambiente. Foi uma pessoa que entrou para ser ministro, talvez até pelo viés tradicional, e realmente se converteu à causa.

Ele apareceu nos escândalos que o pai dele, o senador José Sarney, protagonizou, como no caso da empreiteira que teria facilitado a venda de um imóvel para ele.
Essa questão da casa não ficou comprovada. As dúvidas que apareceram estão todas sendo investigadas, e devem ser investigadas. Inclusive para que os inocentes sejam inocentados e os culpados sejam punidos. Mesmo que minha posição tenha sido pelo afastamento de Sarney [da presidência do Senado], o deputado José Sarney Filho foi um dos grandes entusiastas da minha entrada no PV.

Esta será a primeira eleição presidencial sem o Lula em 21 anos. Ele vai fazer falta?
Sem o Lula em termos, ele vai ter um papel muito forte... Não vou votar no Lula pela primeira vez. Ainda bem que ele não é candidato! [Risos.]

Como foi sua aproximação do empresário Guilherme Leal, cotado para ser seu vice?
Conheci o Guilherme quando já estava aqui no Senado, muito pelo trabalho que ele vinha fazendo no Instituto Ethos, um grupo de empresários que foram a vanguarda do socioambientalismo no Brasil. Ele não usa a questão ambiental como marketing. Tem mais gente assim, como o Oded Grajew, o Ricardo Young, o Roberto Klabin, o Israel Klabin, o Eduardo Capobianco...

Mas vice-presidente só pode ter um...
[Ri]
Sim, mas até agora o Guilherme só se dispôs a se filiar ao PV. Já foi muito bom. Não assuste o Guilherme!

Um empresário como vice ajudaria a acalmar alguns setores da sociedade, como José Alencar fez em relação ao Lula?
Acho que o Guilherme vai se sentir muito honrado em ser comparado ao nosso querido José Alencar... Olha, a realidade responde na língua em que é perguntada. É pretensão achar que se pode falar todas as línguas e pertencer a todas as tribos. Então, se para os empresários é bom ter seus pares falando as mesmas coisas que falo, ótimo.

Como mudou sua relação com o tempo desde que se tornou candidata?
O tempo já era um recurso precioso e escasso...

E não renovável.
[Risos]
Exato. Agora, está mais precioso e mais escasso. Com mais necessidade de ser bem manejado. Mas está no começo, ainda é uma pré-candidatura. Meu dia começa mais ou menos às 6h15. A agenda, por volta das 8h30, e acaba bem tarde. Ontem saí daqui do gabinete [no Senado] às 22h40.

O tempo da sua infância, no interior do Acre, devia ser muito diferente.
O tempo era longamente degustado. As coisas aconteciam lentamente. As distâncias eram muito grandes, também. A casa mais próxima da nossa ficava a 1h45 de caminhada. O comboio que trazia mercadorias e levava borrachas passava de 15 em 15 dias. Aprendi a viver com estes dois tempos: o tempo de acolhimento, em que você é capaz de processar as coisas e ter alguma intimidade, e o tempo da cidade, que expõe, exibe, busca a velocidade.

Qual foi a primeira cidade em que morou?
Manaus. Tinha 6 anos de idade quando meu pai vendeu nossas benfeitorias, porque o seringal era do patrão, e fomos para lá. Ficamos cinco meses em Manaus, num bairro de invasão chamado Morro da Liberdade. Não deu certo. Antes de o dinheiro acabar, meu pai resolveu ir para Belém. Ficamos um ano e oito meses. Depois, tivemos que voltar pro Acre, altamente endividados.

Como foi chegar a Manaus?
Me assustou muito aquilo tudo. Mas era uma criança curiosa, então comecei a prospectar a cidade, escondida da minha mãe.

Saía de casa escondida?
Saía com uma prima que é um ano mais velha, tinha uns 7 anos. Nós fomos a um colégio de freiras. Foi a primeira vez que vi um piano e um tapete. Tinha uma freira e uma moça estudando piano com ela. Ouvi aquela música e achei tão bonito... Nunca tinha ouvido uma música daquela, ainda mais saindo de uma caixa de madeira. Quis me aproximar, mas a gente tinha andado pelo igarapé, na lama, e estava com as sandalinhas sujas. Tirei a minha sandalinha, botei na mão e saí caminhando pelo tapete. Quando a freira viu, disse: “Não precisa tirar as sandálias”.

E esse cuidado de tirar as sandálias sujas?
Morei com a minha avó dos 5 anos pra frente, lá no seringal. Ela era velhinha, tinha uma mão dura, o que dificultava fazer algumas coisas. Aprendi que quanto menos sujasse a casa, melhor, pra minha avó não trabalhar. Então, nunca entrava com a sandália suja dentro de casa.

Por que você morava com ela, e não com seus pais?
Me apeguei muito à minha avó. Minhã mãe ia pro roçado com meu pai, e eu ficava com a minha avó. Aos 4 anos, comecei a insistir a morar com ela.

E a sua mãe?
No início, resistiu. Mas era uma casinha perto, uns 10 minutos andando dentro de uma capoeira. Persisti, até que ela deixou. Ia brincar com os meus irmãos na casa do meu pai e, como não gostava daquela barulhada, voltava pra minha avó... Era uma criança que vivia com pessoas idosas, também morava lá um tio que era xamã.

Xamã?
Gostava muito dele. Viveu com os índios dos 12 aos 37 anos, por aí. Depois, saiu da aldeia do Alto Madeira e foi morar com a gente. Ele me ensinava um pouco de pescaria, de cerâmica, os segredos da floresta. De sete em sete anos, ficava 40 dias e 40 noites na mata. Um retiro, um ritual, não sei explicar... Quando ele ia, eu ficava rezando à noite, com medo de a onça comer ele.

Já viu onça?
Cara a cara, não. Mas ouvi o esturro. Passei com minhas irmãs perto de onde ela guardou a carniça. Foi uma experiência forte. Nossos cachorros ficaram ganindo, uns se urinavam, outros se obravam. Nós ficamos desesperadas, subimos numa árvore. E os cachorros lá embaixo pedindo socorro [risos]. A sorte é que tinha uma espingarda. Como a gente não sabia atirar, minha irmã pegou o cano da espingarda e buzinou nele para pedir ajuda. Meu pai escutou e veio...

Vocês andavam com espingarda?
É, minha mãe achava que poderia dissuadir alguma abordagem.

De homem?
É, de homem. Era uma espingarda calibre 20. Minha irmã mais velha era quem tinha a autorização pra carregar. Graças a Deus, nunca aconteceu nada.

Como eram os rituais do seu tio xamã, fazia fumegações, conversava com espíritos?
Na linguagem espiritual dele, sim. Se alguém ficava com azar pra caçar, pra pescar, pra qualquer coisa, recorria às defumações dele.

Ele chegou a fazer alguma coisa quando a senhora ficou mais doente?
Não... O que ele fazia era me dar chás e me ensinava a fazer chás.

Conhece bem as plantas?
Uma boa parte, sim. Meu pai às vezes me testa. Se você tá com febre, parecendo malária, toma chá de quinaquina. Se tá com anemia, chá de casca de jatobá; diarreia, chá de olho de goiaba; verminose, come semente de jerimum com semente de mamão.

Já tomou o chá do Daime?
Não. Conheço algumas comunidades do Daime, tenho amigos lá do Santo Daime, mas nunca senti necessidade de tomar. Sempre tive a minha espiritualidade... Teve um momento de um certo distanciamento, mas depois retomei novamente.

Que momento foi esse?
Foi durante a militância estudantil.

Uma conversão marxista?
Quase. Você vai se envolvendo nos movimentos sociais, nas lutas... Tanto que meus amigos marxistas-leninistas me chamavam de “igrejeira”.

Chegou a considerar religião o ópio do povo?
Não, conhecia muitas pessoas como [o arcebispo de Porto Velho] dom Moacyr Grecchi para imaginar que o que faziam era o ópio do povo.

Alguma experiência com drogas?
Nunca. Bebida alcoólica, só Biotônico Fontoura [risos]. Com tantas malárias e hepatites, tenho um fígado muito delicado, não dá para chegar perto de bebida alcoólica.

Como reage a uma certa unanimidade que se forma em torno da sua figura?
Com a clareza de que ninguém está acima do bem e do mal, de que somos todos seres humanos, pessoas falhas... Não se pode alimentar esse processo de mitificação.

Marina Silva lidera uma marcha de seringueiros no Acre, em 1986

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