Share |

Tuesday, August 17, 2010

Construindo uma sociedade que sirva às necessidades fundamentais da educação

Algumas considerações sobre a educação no século XXI

A indepêndencia da educação

Gostaria de apresentar algumas sugestões específicas para a reforma do sistema educacional.

Diante da crise na educação, foi fundado, em março de 2000, o Conselho Nacional de Reforma Educacional (NCRE, sigla em inglês), uma junta consultiva do primeiro-ministro japonês para discutir, junto com vários organismos do Ministério da Educação, sobre a direção que deve ser dada à reforma educacional.

Embora seja natural a educação ser reconhecida como uma questão de máxima importância para a nação, a reforma não deve ser conduzida em etapas buscando simplesmente paliativos para solucionar problemas específicos, mas sim com uma perspectiva de longo prazo. Como a educação está inextricavelmente inter-relacionada com a sociedade, é natural que o processo de responder às mudanças dos tempos pode acarretar um grau de tentativa e erro. No entanto, a orientação da reforma foi, com freqüência, fortemente afetada pela tendência política da época ou formada por contramedidas míopes que consistem simplesmente de reações para as mudanças no ambiente imediato. Isso foi também um problema no Japão anterior à guerra. Em Sistema Pedagógico de Criação de Valor,1 publicado há setenta anos, Makiguti indicou: “Assim como a dificuldade com qualquer prédio muito antigo, nosso sistema educacional totalmente instável acabou com uma interminável sucessão de medidas provisórias. Nossas escolas são incapazes de responder às exigências da nova era e, como conseqüência, estão orientando mal o progresso futuro dos jovens que nelas ingressam. Essa situação é realmente lamentável.”

Desafiando a natureza míope e superficial das atuais tentativas do Japão de reformar o sistema educacional, ele propôs a criação de duas novas instituições para desenvolver uma perspectiva educacional visando à nova era, ou seja, uma “sede educacional” para atuar como uma agência central permanente e independente para a educação e um “instituto nacional para pesquisa educacional” para dar assistência à sede. Este último foi de fato fundado logo após a guerra, mas uma agência central como ele havia imaginado ainda não foi concretizada.

O NCRE poderia cumprir essa função em potencial mas, por ser um organismo ad hoc, haveria o risco de essa importante questão ser tratada como uma medida provisória. Por essa razão, gostaria de propor o estabelecimento de uma comissão central permanente que se comprometa com a reconstrução a longo prazo de toda a estrutura do sistema educacional. E deveria ser organismo independente e institucionalmente isolado de toda e qualquer influência política. É indispensável assegurar a independência como um meio para evitar a descontinuidade nas políticas educacionais no caso de mudanças na administração e também para evitar reformas arbitrárias causadas pela interferência política.

Já há algum tempo sugeri que a estrutura da divisão de poderes fosse expandida à educação proporcionando status e independência iguais aos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Como a educação é um grandioso empreendimento que forma os indivíduos das futuras gerações, deve ser totalmente livre da interferência política. Essa era também a intenção de Makiguti e seu aliado e sucessor, Jossei Toda, que promoveram uma abnegada campanha, durante as décadas de vinte e trinta, contra a educação nacionalista, que empurrava o Japão para a guerra.

Essa comissão central permanente deveria então assumir a liderança em estabelecer firmes princípios e diretivas de longo prazo para a reforma da educação ao mesmo tempo em que se mantém em contato com organizações tais como o Instituto Nacional para a Pesquisa Educacional do Japão.

Além dessa missão vital, essa comissão central permanente teria um foco mais amplo que daria condições ao Japão de abrir um novo caminho para a contribuição internacional. A base da paz mundial serão o intercâmbio e a cooperação internacionais no cenário educacional, transcendendo os interesses nacionais. É por essa razão que tenho alimentado um sonho, concebido há mais de vinte anos, e que poderia ser chamado de “Nações Unidas da Educação”,2 com a finalidade de tornar a educação livre da interferência política em todo o mundo.

Se o Japão assumisse o papel de promover a independência da educação em todo o mundo com o estabelecimento de uma comissão educacional permanente como essa, isso sem dúvida ajudaria a criar uma nova identidade para o Japão como um país devotado à educação. No mês de abril deste ano, o Japão patrocinou a realização da primeira Cúpula da Educação do G8, da qual participaram ministros da educação. Gostaria de propor que no futuro o Japão apoiasse ativamente a realização regular de cúpulas internacionais sobre educação, promovendo uma ampla gama de intercâmbios não apenas no nível governamental como também entre indivíduos ativamente engajados na educação. Assim como ficou ratificado na Cúpula da Educação do G8, as questões educacionais não estão limitadas aos países. Por conseguinte, o Japão deve assumir um papel fundamental na condução de outros países à cooperação internacional para abrir um novo horizonte para a educação no século XXI.

A educação em crise

Prestes a adentramos o século XXI, a educação é uma vez mais foco de considerável discussão. No Japão, o debate tem se concentrado na reforma educacional. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para responder a recentes questões levantadas e oferecer algumas sinceras opiniões a esse debate bem como fazer algumas propostas concretas.

Um problema muito comum recentemente tem sido o das crianças que, por várias razões, particularmente pelos maus tratos, recusam-se a ir à escola. Diz-se que o problema pode afetar qualquer criança no país: a pesquisa anual do Ministério da Educação do Japão nas escolas japonesas revela que a abstenção nas escolas de nível fundamental atingiu um número sem precedentes de mais de 130 mil estudantes em 1999. Isso significa que, no nível elementar, um de cada 290 estudantes não consegue ou não deseja ir à escola e, no ensino médio, um de cada quarenta, ou seja, uma média de um estudante por classe.

No Japão, tem ocorrido uma terrível série de suicídios em escolas e outras tragédias resultantes de maus tratos. E a crise aumenta, ao mesmo tempo em que o problema mundial da dependência das drogas também se espalha no país. Além disso, tem havido uma série de crimes de adolescentes em anos recentes: uma sucessão de homicídios cometidos por jovens entre quatorze e quinze anos e, apenas no ano passado, crimes que chocaram a opinião pública japonesa, como o seqüestro sem motivo de um ônibus por um jovem de dezessete anos, matando uma pessoa e causando graves traumas em todos os outros passageiros, e o de um garoto que brutalmente golpeou a mãe até a morte com um bastão de beisebol — crimes que praticamente seriam impensáveis no Japão há poucos anos.

Os profissionais nos campos da psicologia juvenil e da educação analisam essas questões em busca de soluções. Contudo, falando claramente, a sociedade adulta ainda não consegue tratar esses problemas. Chocados com essa monstruosidade, sentimo-nos desamparados ante essa indescritível tendência.

Como um indivíduo que aspira ao desenvolvimento de jovens saudáveis que se responsabilizarão pelo futuro, redigi uma proposta para uma reunião nacional da Divisão de Educadores há dezesseis anos intitulada “Pensamentos sobre os objetivos da educação”.1 Fundamentado no princípio de que a reforma educacional deveria ser norteada pelo humanismo e não pela política, apresentei nessa proposta um ideal humanístico imbuído de criatividade, internacionalismo e totalidade.

Lembro que também naquela época a crise da educação era uma questão de grande preocupação, e pais e professores e muitos outros indivíduos estavam profundamente preocupados com questões como comportamentos problemáticos, violência nas escolas e abstenção. Cerca de quinze anos se passaram desde então e, infelizmente, a despeito dos esforços das pessoas envolvidas, não somente não houve nenhuma melhora mas essa situação tornou-se hoje a norma, e vários outros problemas surgiram em conseqüência.


A fuga do aprendizado

Um dos problemas mais sérios recentemente é o do colapso da disciplina nas escolas à medida que as aulas tornaram-se incontroláveis devido ao comportamento intempestivo dos estudantes. O problema era inicialmente característico do ensino médio, mas vem afetando também o nível fundamental nos anos recentes. Nos casos mais graves, as crianças já estão indisciplinadas na época em que entram no nível elementar vindas do jardim-de-infância, perturbando totalmente as aulas.

Há pesquisas que indicam que um terço dos professores nas salas de aula, cuja função é a de se responsabilizar por essas crianças, relatam que ficam tão frustrados que chegam a pensar em desistir de tudo. Se nada for feito, poderemos ver a disfunção de todo um sistema escolar.

Outro problema grave é o declínio do nível de aprendizado. A aversão dos estudantes ao estudo, como visto por seu desgosto por matérias como matemática ou ciências, está se tornando um sério problema. Vários estudos demonstram como o nível de aprendizado das crianças japonesas está decaindo e como hoje isso afeta o ensino médio e os posteriores.

Há relatórios — que seriam cômicos se não fossem chocantes — de estudantes universitários que não compreendem até mesmo os conceitos mais básicos.

Vou me referir a essa situação como “a fuga do aprendizado”. Não acho que seria dramático descrever essa situação como uma derrota da educação, o fracasso de nosso sistema educacional para realizar suas funções essenciais: prover de nutrientes espirituais que nos possibilitem desenvolver nossa criatividade aprendendo com a sabedoria de nossos predecessores e, dessa forma, tendo acesso ao patrimônio cultural comum que a humanidade transmite de geração a geração.

Em 2002, as escolas japonesas reduzirão a semana escolar de seis para cinco dias. Em consonância com isso, o Ministério da Educação está introduzindo um currículo escolar totalmente revisado que objetiva cultivar nas crianças o “gosto pela vida”, fornecendo-lhes condições para crescer. Essa ação deve, penso eu, refletir as críticas ao método convencional que enfatiza demais a competição escolar e é uma das principais causas da “fuga do aprendizado”.

Entretanto, há muitas dúvidas quanto a se essa mudança conduziria a um genuíno renascimento do ensino ou a um desenvolvimento abrangente da capacidade de aprendizado dos estudantes. Essas preocupações baseiam-se na possibilidade de a redução na carga horária, em vez de promover o estudo voluntário como pretendido, resultar em crianças que passam mais tempo assistindo à televisão e jogando videogames, não produzindo portanto os resultados esperados.

Eu partilho essas ansiedades. Embora o sofrimento das crianças, como simbolizado pela abstenção, deva ser tratado imediatamente, não posso acreditar que os problemas subjacentes sejam solucionados simplesmente consertando o sistema.


As crianças são o espelho da sociedade

Assim, o que está por trás da patologia de nossas crianças de se afastarem da escola, de seu comportamento problemático e da “fuga do aprendizado” que é excessivo na sociedade contemporânea? Acredito que a causa fundamental esteja no completo declínio das funções educacionais que deveriam ser inerentes não apenas às escolas mas também a nossa comunidade, família e à sociedade como um todo.

Se é a educação, em seu mais amplo sentido, que possibilita aos seres humanos expressarem verdadeiramente sua humanidade, então deve haver uma desordem funcional na sociedade japonesa contemporânea que impede os indivíduos de se tornarem genuinamente maduros. Esse colapso manifesta-se mais agudamente no mais frágil e sensível integrante de nossa sociedade, ou seja, a criança. Correndo o risco da extrema simplificação, jamais devemos nos esquecer do tradicional dito “as crianças são o espelho da sociedade” quando consideramos os problemas da educação.

A menos que os adultos reflitam para se corrigirem naquilo que as crianças espelham, as tentativas para reformar o sistema, embora bem intencionadas, acabarão definitivamente em medidas temporárias ou substitutas que simplesmente não atingirão o âmago do problema.

Encontrei as seguintes e comoventes palavras num artigo sobre educação moral escrito por Taiti Yamada: “Nossas crianças precisam muito mais do que sermões vazios sobre virtude. Como adultos, devemos de alguma forma demonstrar-lhes na prática como viver uma vida melhor.”²

A verdade, contudo, é que o mundo adulto revelado repentinamente após o final do período de rápido crescimento econômico do Japão e após o colapso da “bolha” econômica está num estado extremamente triste e obscuro, aproximando-se do novo século sem praticamente nenhuma vitalidade. Seja na política, na burocracia, nos negócios, nos meios de comunicação, a elite tem se comportado vergonhosamente, totalmente voltada à autodefesa, fugindo da responsabilidade social e protegendo seus próprios interesses.

A sociedade japonesa está repleta de materialismo e de uma escandalosa corrupção entre adultos, uma situação simbolizada por um grande número de casos de crimes relacionados a recebimento de seguro que demonstram a perda de valores e de senso de propósito. Isso lançou definitivamente uma sombra de trevas no coração de nossas crianças. Numa sociedade carente de modelos que possam inspirar a próxima geração, é natural que a educação não funcione adequadamente.

Há indubitavelmente muitos indivíduos que não são afetados pelo sensacionalismo dos meios de comunicação e que continuam a trabalhar com sinceridade, aderindo à crença de que o essencial é, nas palavras do Sr. Yamada, “demonstrar na prática como viver uma vida melhor”. Entretanto, mesmo essas pessoas encontram dificuldades em sustentar esses princípios. O fato de que as pessoas estão louvando uma imagem superidealizada dos “bons dias da era Meiji”3 talvez reflita o fato de que sintam uma deficiência espiritual na sociedade japonesa contemporânea.


Revendo a Lei Fundamental da Educação

Acredito que esses problemas são também parte dos motivos que sustentam os clamores por uma revisão e possível reforma da Lei Fundamental da Educação, o eixo principal do sistema educacional do pós-guerra, como parte de uma série de planos para a reforma educacional.

O relatório de julho de 2000 feito pelo conselho particular do primeiro-ministro e pelo Conselho Nacional de Reforma Educacional (NCER) declara que a visão predominante era a da necessidade de reformar a Lei Fundamental da Educação e de que no “preâmbulo e provisões do Artigo 1º, havia uma exagerada ênfase no indivíduo e na humanidade universal e a omissão do respeito pela nação, pela comunidade, pela tradição, pela cultura, pelo lar e pela natureza”.

De fato, é difícil não concordar com os princípios declarados no preâmbulo e no Artigo 1º. O Artigo 1º da Lei Fundamental da Educação estipula que os objetivos da educação são os seguintes:

A educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade, empenhando-se em criar pessoas, saudáveis em mente e corpo, que amem a verdade e a justiça, estimem os valores individuais, respeitem o trabalho e tenham um profundo senso de responsabilidade e estejam imbuídas de um espírito independente, como construtoras de um Estado e uma sociedade pacíficos.4

Essa é uma declaração perfeitamente aceitável do princípio universal de “pleno desenvolvimento da personalidade” embasado no princípio do respeito pela dignidade individual e é pertinente às pessoas de todas as épocas e culturas.

Entretanto, ao aplicar esse princípio universal, sua relevância deve ser testada no contexto ético e social. Nesse sentido, penso que aqueles que elaboraram essa lei não foram suficientemente específicos. As pessoas não conseguem compreender a fundo o que o indivíduo realmente significa nesse contexto.

De fato, o indivíduo somente pode tornar-se plenamente realizado em interação com os outros e, para isso, é necessário controlar o egoísmo. Talvez isso seja tão evidente que os elaboradores da lei não prestaram muita atenção a esse ponto. Não conseguiram se conscientizar totalmente dos perigos do individualismo degenerando no egoísmo.

Dessa forma, qualquer reforma ou revisão da lei proposta pelo NCER deve estar fundamentada numa clara compreensão da maneira como esses princípios universais encontram expressão dentro de particularidades culturais. E acredito que essa mesma preocupação tenha motivado Tatsuo Morito, ministro da Educação, que teve um importante papel na elaboração da Lei Fundamental da Educação e que posteriormente expressou suas dúvidas quanto a sua efetividade.

Embora não seja mencionado no relatório do conselho, há um clima reacionário no país clamando pelo retorno do espírito contido no seguinte trecho do Édito Imperial sobre Educação para corrigir essas deficiências.

Vós, nossos vassalos, sede filiais aos vossos pais, afeiçoados a vossos irmãos e irmãs; como maridos e esposas, sede harmoniosos, como amigos fiéis; conduzi-vos na modéstia e na moderação; estendei vossa benevolência a todos...5

Apenas encher o texto com referências à cultura, à tradição e ao lar não produzirá, creio eu, muito efeito. Sem dúvida, a restauração das virtudes expostas no Édito Imperial sobre Educação seria totalmente anacrônica quando se considera o papel que o Édito assumiu no Japão imperial e no sistema patriarcal antes e durante a guerra.6

A Lei Fundamental da Educação tem sido o eixo principal do sistema educacional do pós-guerra no Japão e, por essa razão, acredito que qualquer reforma deva ser empreendida somente após cuidadosa reflexão e revisão; uma revisão apressada deve ser evitada.


Uma mudança de paradigma

O moderno sistema educacional japonês chegou a uma conjuntura crítica. Estamos testemunhando as conseqüências de a educação ser subordinada a várias agendas burocráticas e políticas sob o controle do Ministério da Educação.

O progresso do Japão moderno, seja ele na política anterior à guerra de construir a prosperidade nacional e a força militar ou na tensão do pós-guerra em se tornar uma superpotência econômica, foi motivado por um imperativo nacional incondicional de alcançar e superar o avanço dos países do Ocidente. Ao mesmo tempo, já desde a era Meiji a educação tem sido coercitivamente utilizada como um meio de atingir esses objetivos. Ambas as abordagens estão hoje evidentemente num impasse à medida que o Japão é agora compelido a uma transformação de uma era de industrialização para uma era de informação. Portanto, considerando a educação do século XXI, gostaria de declarar que a necessidade mais urgente é uma mudança do paradigma de olhar para uma “educação em prol da sociedade” para a construção de “uma sociedade que sirva às necessidades fundamentais da educação”.

Ao formular o paradigma conceitual de “uma sociedade que sirva às necessidades fundamentais da educação”, fui inspirado pelo professor Robert Thurman da Universidade de Columbia. A cada oportunidade que tive de encontrá-lo, ficava mais impressionado pela profundidade de sua visão. Numa entrevista feita pelo Centro de Pesquisas de Boston (BRC),7 ele foi questionado sobre como considerava o papel da educação na sociedade. E respondeu: “Creio que a questão deva ser a seguinte: ‘Qual o papel da sociedade na educação?’ Porque em minha visão a educação é o propósito da vida humana.”

É realmente um discernimento perspicaz. O professor Thurman diz que essa visão deve-se principalmente às influências dos ensinos de Sakyamuni, a quem ele considera um dos primeiros professores da humanidade. Isso está de acordo com a filosofia ética de Kant, o qual insiste que devemos respeitar a autonomia dos outros e que os seres humanos jamais devem ser usados como um meio para um fim.

Aprender é o exato propósito da vida humana, o fator primário no desenvolvimento da personalidade e o que torna os seres humanos verdadeiramente humanos. Entretanto, o desenvolvimento da personalidade tem sido consistentemente reduzido a uma posição subordinada e visto como um meio para outros fins. Essa visão tem prevalecido no mundo inteiro por toda a história moderna e particularmente no século XX.

Dessa forma, o sistema educacional foi reduzido a mero mecanismo que serve a interesses nacionais, sejam eles políticos, militares, econômicos ou ideológicos. Um certo tipo de personalidade, não o pleno desenvolvimento da personalidade, foi buscado, como se lançasse os indivíduos a um molde uniforme.

Tratar a educação como um meio em vez de um fim reforça uma visão utilitária da própria vida humana.

É uma terrível tragédia que o século XX tenha sofrido incessantemente com guerras e violência e tenha se tornado uma era sem precedentes de matança em massa. É desnecessário dizer que isso demonstra um aumento na capacidade de matar, o legado negativo do avanço tecnológico. Sinto que isso se deve, em grande parte, a uma mudança de valores na civilização moderna, por deixar de considerar os seres humanos como a base dos valores e, em vez disso, meramente designar papéis subordinados à educação, que deveria ser uma atividade humana primária e fundamental.

Nesse sentido, sinto certa ansiedade quanto às atitudes com relação à revolução da tecnologia de informação (em inglês, “information technology, IT”). Como descrito na Carta de Okinawa sobre a Sociedade de Informação Global na Cúpula Okinawa-Kyushu este ano, “a tecnologia de informação e comunicação é uma das forças mais poderosas para moldar o século XXI”.8 Não há dúvida de que a “revolução IT” se tornará uma das megatendências no século vindouro e é naturalmente importante que não seja deixada para trás.

Professores universitários e autoridades têm observado com freqüência que a decadência da proficiência acadêmica entre os estudantes japoneses, especialmente na matemática e nas ciências, se não solucionada, pode afetar negativamente a capacidade tecnológica e econômica japonesa e conseqüentemente retardar o Japão na corrida mundial rumo à revolução IT. A apreensão com relação a essa situação é perfeitamente natural.

Embora a globalização tenha naturalmente tanto aspectos positivos quanto negativos, a correnteza para a internacionalização no século XXI não pode ser detida. Nenhum país pode deixar de ser afetado.

Porém, minha apreensão pessoal é quanto à possibilidade de trilharmos os passos do passado, ou seja, retornar à idéia de “educação em prol da sociedade” ao tratar do problema de como desenvolver o nível acadêmico de nossos estudantes.

Da mesma forma que a revolução IT tem por natureza o potencial para provocar uma mudança de paradigma na sociedade contemporânea, sua influência contém tanto um potencial positivo quanto negativo. Entretanto, minha observação sobre a atual situação é que somente os aspectos positivos e otimistas têm sido salientados.

Nos Estados Unidos, país que primeiro antecipou a revolução IT, especialmente no setor financeiro, e que algumas vezes parece ter talhado para si uma posição de monopólio em que o materialismo e o “capitalismo-cassino” têm sucesso, as trevas da revolução IT certamente lançam crescentes sombras. Se tudo o que essa nova invenção da tecnologia de informação traz à sociedade humana é uma tendência para o materialismo, então, para que serve essa revolução?


Uma sociedade que confunde felicidade com prazer

Diante dessa tendência, precisamos retornar ao âmago da questão dos valores humanos. Creio ser preciso redefinir o crucial conceito de “desenvolvimento da personalidade”.

As pessoas tomam essa frase, descrita como o objetivo da educação na Lei Fundamental da Educação, como premissa. Mas esse é um objetivo universal por cuja concretização e implementação devemos nos empenhar. Esse é um conceito fundamental e jamais poderá ser reenfatizado o suficiente como a chave para a reforma educacional.

Com essa finalidade, vamos fazer um experimento substituindo a expressão “desenvolvimento da personalidade” pela palavra “felicidade”. O primeiro presidente da Soka Gakkai, Tsunessaburo Makiguti, um brilhante educador, nunca deixava de salientar que o propósito da educação é assegurar a felicidade das crianças.

Hoje, a pedagogia de Makiguti está gradativamente obtendo reconhecimento internacional, mas foi originalmente concebida durante o regime militar pré-guerra no Japão, quando todas as instituições educacionais foram mobilizadas para criar pessoas obedientes ao Império. Era contra esse processo que Makiguti protestava, afirmando que o verdadeiro objetivo da educação devia ser o eterno bem-estar das crianças, e criticava o Édito Imperial sobre a Educação, declarando que este não proporcionava nada mais que um “conjunto mínimo de padrões morais”.

Em outras palavras, ele foi uma pessoa muito sagaz que, durante um período de militarismo fanático, manteve-se firme em sua crença de que a sociedade deve servir às necessidades autênticas da educação humanística e que a educação jamais deve ser sacrificada por causa de objetivos nacionalistas.

No entanto, não se deve confundir felicidade com mero prazer. Confundir o prazer momentâneo com uma vida de verdadeira satisfação e felicidade exemplifica o desvio dos valores que, na minha opinião, constituem a raiz das distorções ocorridas na sociedade japonesa do pós-guerra. Essa atitude equivocada resulta na liberdade sucumbindo para a indulgência e o egoísmo, a paz sucumbindo para a covardia e a indolência, os direitos humanos para a complacência e a democracia, para a oclocracia.

Conseqüentemente, cessa o desenvolvimento da personalidade, e temos então indivíduos arrogantes e imaturos, incapazes de abandonar suas atitudes infantis e que nunca ouvem os outros, assim como descritos por José Ortega y Gasset.9

A experiência de uma vida verdadeiramente humana — a felicidade genuína — somente pode ser realizada nas relações e interações entre as pessoas. Nisso se encontra a essência da perspectiva budista sobre a vida humana e a elicidade. A inimizade, a contradição e a discórdia parecem ser aspectos inevitáveis dos relacionamentos entre os seres humanos e entre estes com a natureza e o universo. Mas é com o processo de perseverar apesar disso e de transformar esses conflitos, restabelecendo e rejuvenescendo as relações entre nós, que podemos forjar e polir nossa individualidade e nosso caráter.

Se essas relações forem rompidas, o espírito humano ficará apenas vagando sem objetivo nenhum pela pesada escuridão da solidão. Na Psicologia, isso poderia ser chamado de um “distúrbio da comunicação”, uma patologia da sociedade moderna ocasionada pelo enfraquecimento das relações entre as pessoas.

O comportamento anti-social e o aumento dos crimes praticados por jovens são manifestações críticas dessa patologia social. Há um contínuo debate no Japão a respeito de criar emendas para a lei juvenil, mas o simples fato de mudar a lei não levará a uma solução para o problema. É responsabilidade dos adultos restabelecer com paciência a capacidade de se comunicar, ouvindo as vozes de crianças isoladas que, do meio da escuridão, estão pedindo ajuda.

Há um famoso episódio sobre Sócrates em que sua influência sobre os jovens é descrita como uma arraia elétrica, que aguilhoa quem a toca. Ele explica que pode eletrificar os outros porque ela própria está eletrificada. Da mesma forma, um professor deve ser sempre criativo se quiser despertar a criatividade em seus alunos. Essa é uma qualidade essencial em um educador.

O mais importante é a atitude dos próprios professores. A chave de tudo é a interação humana.


Restabelecendo as relações humanas

A coexistência criativa é claramente um dos conceitos-chave para o século XXI. Também já me referi a isso alguns anos atrás em uma proposta intitulada “Uma Renascença de Esperança e Humanidade”.10

Também é vital a comunicação entre os seres humanos e o ambiente natural. Em relação a isso, Makiguti foi um homem de penetrante visão. Na abertura de seu livro Geografia da Vida Humana,11 ele salienta a importância da influência do ambiente natural no desenvolvimento da personalidade citando uma obra do famoso educador e reformista Yoshida Shoin (1830–1859): “As pessoas não se desenvolvem isoladas de seu ambiente, e as questões humanas são simplesmente um reflexo das pessoas.

Portanto, para compreender as questões humanas, é preciso primeiro entender o contexto local em que as pessoas se desenvolveram.” Makiguti continua dizendo que somente é possível fomentar as qualidades da benevolência, da boa vontade, da amizade, gentileza, sinceridade e honestidade, e cultivar a nobreza do coração, na comunidade local.

A obra Geografia da Vida Humana foi lançada em 1903, mais de meio século antes de as questões ambientais como a escassez dos recursos naturais e a energia e poluição da atmosfera e da água terem forçado a humanidade a reconsiderar nosso relacionamento com a natureza. Mesmo naquela época, Makiguti havia percebido com perspicácia que o colapso da comunicação com a natureza causa não apenas prejuízos físicos mas também resulta na destruição de virtudes tais como a benevolência, essenciais ao desenvolvimento da personalidade.

O século XX foi um século em que os seres humanos destruíram violentamente o ambiente global, como invasores vorazes. Manter a comunicação e o contato com a natureza é, portanto, algo absolutamente indispensável na educação de nossas crianças e dos jovens que assumirão a responsabilidade pelo século XXI. Assim como na comunicação entre os seres humanos, devemos aumentar as oportunidades de interagir diretamente com a natureza em vez da realidade do mundo virtual. O que a realidade virtual tem a oferecer em comparação com a sensação da real comunicação da vida com a natureza — respirar o mesmo ar e aquecer-se à mesma luz do sol que a terra, as árvores, a grama e os animais — a dinâmica amplitude da vida?

Recordo-me de uma passagem de um artigo de Nobukiyo Takahashi, autoridade na pesquisa florestal.

A beleza da floresta ao anoitecer, especialmente quando é lua cheia, contrasta nitidamente o limite entre o céu e os cumes das montanhas, como se fossem imagens gravadas em um bloco de madeira. É um mundo em preto e branco. É um mundo saboreado somente por aqueles que o experimentam. Captadas em foto ou em vídeo, pode-se até certo ponto discernir essas imagens, mas nunca senti-las da mesma forma. Pois quando se está ali, não se tem contato apenas com os olhos: sua pele sente a temperatura e a umidade; pode-se sentir os aromas da floresta ao anoitecer; sons indefinidos passam rapidamente pelo seu ouvido. Saia caminhando pela floresta à noite, pegue uma folha e examine-a dos dois lados. Quanta beleza pode-se descobrir!¹²

Para construirmos uma sociedade que sirva às necessidades fundamentais da educação no século XXI, não devemos nos isolar nem nos dividir. Ao contrário, devemos aprofundar as relações humanas que transcendam as diferenças de raça e nacionalidade e também permanecer em plena e livre comunicação com a natureza. Devemos dar máxima prioridade ao cultivo da força de caráter e de valores nos jovens de tal forma que lhes dêem condições de assumir a liderança na construção de um mundo de coexistência criativa.

Notas 1. Daisaku Ikeda, Buddhism in Action. Tóquio, NSIC, 1985, vol. 2, pág. 328. 2. Chuo Koron, edição de setembro de 1999. 3. 1868–1912. Considerado como o início do moderno período japonês. 4. Kyoiku Kihon Ho. Promulgado em 31 de março de 1947. 5. Kyoiku Tyokugo. Proclamado pelo imperador Meiji em 30 de outubro de 1890, permaneceu em vigor até o fim da Segunda Guerra Mundial. 6. Glorificando os valores da lealdade e da piedade filial, o Édito Imperial sobre Educação foi usado como um princípio absoluto de educação e serviu como um poderoso instrumento de doutrinação ideológica. 7. Centro de Pesquisas de Boston para o Século XXI, . 8. Cúpula Okinawa-Kyushu, .. 9. José Ortega y Gasset, The Revolt of the Masses. Nova York, W.W. Norton & Company, Inc., 1932. 10. Daisaku Ikeda, Kibo to Kyosei no Renaissance wo, Proposta de Paz, 26 de janeiro de 1992. 11. Tsunessaburo Makiguti, Jinsei Chirigaku, The Complete Works of Tsunesaburo Makiguchi. 1903, reimpressão, Tóquio, Daisanbunmei-sha, 1987, vols. 1 e 2. 12. Nobukiyo Takahashi, Mori ni asobu: Dorogame-san no sekai. Tóquio, Asahi Shimbunsha, 1992.

No comments:

Post a Comment